17.8.13

10 de Outubro de 1970





O almoço –  xaréu cozido, uma novidade  - foi no Hotel Portugal, em Nampula. À sobremesa, papaias muito maduras e mangas temporãs, algumas já abertas sobre pratinhos, outras aguardando escolha dentro do grande cesto-fruteira no meio da mesa, dominavam em absoluto a atenção da Noélia e dos miúdos, noviços por inteiro quanto aos áfricos comeres. Eu rejubilava com a oportunidade de mostrar a minha africanidade de vários anos, ainda que por mais oestes longitudes.
Só que a curiosidade dos iniciandos descambou em desconfiança. O apetitoso da cor e da textura deixaram-se anular pelo cheiro das mangas, cuja única referência conhecida jazia  na prateleira do meio, na contra-loja da farmácia da tia Esmeralda, sob a forma de um frasco rotulado de ‘essência de terebintina’.
Insisti na bondade da coisa, na semelhança da papaia com o bom melão, nas virtudes defecatórias de sobejo conhecidas e aduzi um punhado de boas razões para provar o artigo, gostar dele e quiçá repetir. Consegui que provassem.    
    
Tínhamos chegado três dias antes a Lourenço Marques.
O Sub-Director Provincial dos Serviços de Marinha, tivera de ir ao aeroporto e aproveitou para me receber. Fiquei então a saber, ser António Enes o meu destino. A descrição sumaríssima que me fez da terra teria sido desanimadora, se entre as razões que uma vez mais me levavam a África não figurassem África ela própria, as grandes distâncias, o exotismo, o calor, as carências, o muito por fazer à espera de quem quisesse fazer e enfim, algum ainda remanescente espírito de aventura. Poderia mesmo acrescentar um éde cétera, que me sobravam algumas razões. Mas a rápida monografia que aquele meu camarada e conterrâneo fez de António Enes, promovida a cidade havia uma dúzia de dias pode resumir-se assim: ‘uma povoação com uma rua de areia vermelha e alguns barracões de um dos lados’.


Jantámos nessa quarta-feira em casa da Beatriz e do Zé Alexandre. Foi grande a satisfação de encontrar amigos em terra estranha; e creio que o casal, também recém-chegado, terá sentido algo parecido. É que nos últimos três anos, não passara ainda um mês, ele e eu integrávamos a primeira guarnição da ‘Gago Coutinho’, 


uma das mais recentes sete fragatas. Navegou-se muito, viveu-se muita tormenta, fez-se muito exercício, conheceu-se muita terra e muita gente. O último período de manobras, na Stanavforlant, começara para nós em Maio e acabara em Setembro. Mal tivemos tempo de fazer as malas que levámos a Moçambique. Mas viajar tornara-se de tal maneira corriqueiro que poucas faltas houve nas imbambas.                           
As duas costas da América do Norte, Canadá, Brasil, Panamá, Martinica, Noroeste da Europa, Islândia, tinham sido entre outros, destinos nossos. Em alguns portos, os bens de consumo eram significativamente mais baratos do que em Portugal, além de muitos deles nem sequer serem ainda conhecidos. Assim, todos de uma maneira geral, cada um fazendo esticar ao máximo as suas posses, comprava para si e os seus, utensílios, bugigangas, roupas e ainda mais bugigangas que parecendo o mais das vezes coisas úteis ou bonitas, com freqüência se revelavam supérfluas ou inadequadas. Ficou no rol das recordações a compra de camisolas tingidas com tremidas fantasias circulares aleatórias, de todo novas para nós, mas logo a seguir muito em voga, compra que fizemos na Escócia e de que só a bordo descobrimos a indicação de origem: ‘Made in Portugal’. O mais caricato porém – mais tarde soubemos - é que quem as fizera fôra a mulher de um camarada nosso, para conseguir uns cobres para alfinetes. Deve ter sido um sucesso o reencontro da camisola com a autora.

Viviam-se os agora tão decantados anos sessenta. Vi o ‘Hair’, a primeira ópera-rock, em Londres e Nova Iorque; e só a não revi no palco original, em São Francisco, porque me deu uma de poupadinho e achei que os dez ou onze dólares do bilhete estavam no momento muito para além do depauperado orçamento familiar; vivi um dia em Greenwich Village; dei umas passas de marijuana, num ‘be in’, no porto de Nova Iorque; estava na Virginia aquando do Woodstock; vi ‘hippies’ preguiçando sobre a relva em parques de São Francisco, tornando-a quase invisível; mas também os vi, por estranho que pareça, a trabalhar. Bem certo que iam deitados, quase junto ao asfalto, nas complexas viaturas que pintavam a sinalização rodoviária horizontal . Naquela bela cidade onde me senti quase em casa, comprei um LP do Carlos Paredes por menos de metade dos 180$00 do preço de Lisboa. Perto de San Diego, porto-alvo da nossa ida à Califórnia, visitei com alguns camaradas a Disneylândia e o Sea World. Ali gastámos um dia inteiro e pudemos, a par de um banho de tecnologia moderna, regressar à meninice.

Estas vivências não passaram por mim impunes.
Trintão recente, deixei-me embalar no vento que passava, se bem que nunca fazendo cedência de um certo distanciamento crítico. Foi cavalgando esse vento que me permiti comprar umas calças Levi’s de bombazina de veludo azul eléctrico numa cantina da marinha americana em Norfolk; e foi assim que numa loja Bata  em Antuérpia, comprei umas botas da marca, que derramavam sobre os pés umas farripas de couro ao modo do tradicional casaco de Buffalo Bill. Tudo coisas  discretas! Vá lá que a camisa bège tinha sido uma manifestação de bom gosto.

Deixem-me agora voltar ao Hotel Portugal.
Como é freqüente, a prova da papaia não foi feliz. Acontece quando ao palato falta um sabor de comparação. O da Noélia reprovou tudo e a indisposição que a incomodava desde de manhãzinha, já ampliada pelo voo algo trepidante do Boeing 737, acabou numa expressão de náusea. A desilusão foi compensada pelos filhos que a tudo lamberam os beiços.
E lá fomos para o aeroporto reiniciar a viagem.
    
Surpresa! O avião que nos esperava era um tradicionalíssimo Dakota cujo aspecto exterior avelhentado contrastava com as modernas máquinas que até Nampula nos tinham levado e prenunciava o desconforto de estofos duros, muito barulho, cheiros e outras quejandas virtudes que forçaram afinal a sua substituição pelos Friendship também naquele percurso, levada a cabo pouco tempo depois.
A acentuada inclinação do corredor central, a mal-enjorcada  rede bagageira à nossa frente, onde as malas empilhadas a granel tentavam esforçadamente caír, mais o calor pejado de odores fedorentos no interior do avião, indiciavam uma menor segurança de voo. Devia ser psicológico. Por outro lado, os hélices, no cotejo com os reactores que nas primeiras etapas tinham feito a corrida pela pista transmitiam uma sensação, naturalmente falsa, de falta de força. Mas a coisa descolou e voou. Pelas janelas mais próximas do chão avermelhado durante a rotação de acêrto do rumo, viam-se lá em baixo os gigantescos calhaus que rodeiam e assinalam Nampula. O solo, àquela hora muito quente, facilitava aqui e além a ocorrência de poços de ar, em cada vertiginosa descida coração e estômago comprimindo-se...

E o que tinha de acontecer, aconteceu: a rede bagageira não aguentou o esforço, rebentou de supetão e maletas e malões dispararam para a popa do avião. Pelos olhos que olhei perpassava a côr do medo. Reagi, minimizei o acontecido para ter comigo a minha gente , arvorei um ar ousado tipo ‘Ó Cosme, olha nós, hem?’ e preparei-me para esfolar o rabo da viagem. Foi quando se abriu a porta da cabina e assomou a hospedeira em voz esganiçada:

- Está tudo bem aí atrás?
    
Numa atmosfera mais favorável com a aproximação do mar, o voar tornou-se ligeiro, equilibrado e elegante. Mas já cansados de uma jornada de três vôos em dois aviões, iniciada havia montes de horas, suados e catinguentos da atmosfera quente e viscosa respirada neste último, sem condicionador de ar, ansiávamos pousar.

E foi assim completamente escalmorrados que pusémos pé em terras de Angoche, depois de um pouso não muito suave, mas de grande alívio. Até para a indisposição da Noélia.


Aero Clube de António Enes, podia ler-se na frontaria semicircular que encimava o pequeno edifício térreo, posto à sombra por uma placa assente como um avançado sobre colunas e que mais à frente ainda tinha uma sebe cujo tratamento descuidado não conseguia empobrecer o vermelho das flores que a pejavam.
Ali decorriam todas as operações próprias de um aeroporto.

Seguiram-se os gestos adequados à circunstância: esticar o corpo, mirar o local, segurar os miúdos, controlar de longe o desembarque e movimento da bagagem, uma voltinha de reconhecimento... e foi quando reparei em três conspícuos senhores espècados ao lado do edifício.
Trajando impecáveis fatos escuros ‘de ver a Deus’, gravatas de cetim cinzento de casamento sobre o branco-cal das camisas, escorrendo suor sob um sol que fazia a alegria dos lagartos, tinham o iniludível aspecto de uma comissão de recepção. Não me dei logo conta de que poderia ser eu o alvo, mas quando os olhei mais atento vi que me fixavam. Deveriam saber que me deslocava com mulher e dois filhos e era o único passageiro que se ajustava a tais parâmetros. Apesar disso, por certo de pé atrás, recusavam-se a sobrepor a idèia do chefe que esperavam àquele espécime em camisa cor de grão, calças de bombazina azul gritante e umas botas de camurça cinzenta com franjas quase até ao chão.
Num ápice tive a presciência da verdade e senti-me corar por dentro, pelo ridículo da situação que não previra… e deveria tê-lo feito. Reagi de pronto, dirigi-me a eles, confirmei que não me enganara, apresentei-me e aos meus e ainda que não saiba como isso se faz, tentei dar de mim a idèia de alguém que embora com o aspecto exterior de um ‘hippie’ acabado de transplantar, sei lá?, de Sausalito, era afinal um circunspecto senhor, como eles encasacado, enroscado numa impecável gravata e calçado nos mais brilhantes sapatos pretos. Não creio que tenha conseguido. O Bragança e o Queirós ter-se-ão adaptado com facilidade ao meu inesperado figurino, mas o Sr. Sales, lá no paraíso onde repousa, ainda me não deve ter perdoado e pensará no seu acento goês: Que raio de gajo nos haviam de mandar!?

Os oito quilómetros até à cidade foram feitos na já vèlhinha Vanet Chevrolet azul, escutando atentos as ilustrações sobre o que íamos vendo. Chegados ao cimo da avenida, vi com agrado como era antiquada a idèia que o sub-director tinha do burgo. Mais ainda quando a casa que mais nos enchera os olhos, veio a ser aquela em que nos fizeram entrar para ser nossa por dois anos e meio.


Era o dia 10 de Outubro de 1970,





o nosso primeiro dia de ser macuas.

José Guerreiro
FZ, 16AGO2013


8.8.13

A Missão de Malatane

                  A Missão de malatane





25ª Reünião    

     Chovia. Estuguei o passo. Estava ansioso por chegar ao novo espaço conquistado para os nossos convívios. Tratava-se da vigésima quinta reünião, um redondo número de ordem que ampliava o desejo de reencontro e se materializava no esmêro posto pela organização em alindar a sala. Queria ter a certeza de que os menos assíduos se tinham desta vez disposto a partilhar do ‘bezerro cevado’ que os esperava. À porta, uns quantos companheiros destas parapatenses andanças, configuravam uma comissão de recepção. Senti a minha ansiedade em chegar ser igualada pelos que aguardavam de braços abertos, dando expressão e livre curso neste dia para todos tão especial no ano, a amizades com berço lá longe, no longe para onde olhavam todas as memórias.
    
     Desenvencilhei-me do capuz do anoraque e sacudi-me. Umas primeiras saüdações… e com surpresa dou de caras com o padre Eugénio que não via desde os idos de setenta!
    
     Diz-me o Raúl: - Não o conhece, não é do seu tempo: é o padre Eugénio, da Missão de                                        Malatane.
                               
                                - Conheço, pois. Até já dancei com ele!
   

Carnaval de 1971

      Foi no Carnaval de 1971.

     Numa noite escura de meados de Fevereiro, numa silenciosa noite de António Enes, a campaínha da porta retiniu com insistência e ecoou na quietude que já se fizera em casa, de mistura com risadas de grande galhofa. Seis mascarinhas irreconhecíveis de vozes disfarçadas, faziam trejeitos, simulavam negaças, chocarreavam. 


Não identificámos ninguém. Mas havia entre as espremidas, quase guinchadas falas que nos desafiavam, qualquer coisa que lembrava o Algarve natal.
     Entabulámos um diálogo muito em consonância com a situação, que não consigo reproduzir; e não quero dar-me ao trabalho de o reinventar por temer não ser já capaz de sintonizar-me com o espírito da coisa.
     Encurtando caminho, apresentámo-nos. Vinham brincar connosco, verberar a nossa atitude passiva perante o Entrudo, nós, um casal tão novo, tão cedo recolhidos ao remanso do lar. Que fôssemos folgar com eles, barulhar Antónjo Enes fora, ‘assaltar’ mais gente.
     Ou porque houvesse algo importante a fazer na manhã seguinte, ou porque fosse já muito tarde ou ainda porque não houvesse ninguém disponível para cuidar dos filhos, o certo é que não pudemos juntar-nos à trupe. Com muita pena, que vontade não faltava; além de que, não estávamos munidos dos aprestos indispensáveis à condição de mascarados.
     Que não tinha milando. No dia seguinte havia baile no Clube Africano de Angoche, tínhamos tempo de procurar arreios que nos disfarçassem; e lá estaríamos todos.
                                                                                               
      Comecei por pensar no vestido. Uma mulher que não fosse baixa e pudesse ceder um vestido menos conhecido no burgo? A Noélia matou a charada: D. Conceição Oliveira.
      Umas meias altas, espessas que estivessem fora de uso? Ainda a Noélia: Clara Silva Marques. E saíram umas meias-calça brancas, havia poucos dias chegadas da Metrópole. Ainda me deu umas dicas, sobre o creme com que devia acachapar os pêlos das pernas antes de os embranquecer com pó de talco.
      Uns sapatos que não fossem altos demais, na previsão de possíveis entorses; e a mala, o lenço de cabeça, jóias, etc., etc., etc. Passados tantos anos, já não sei de quem eram. Sei que fiquei uma bela ‘mulher’, ainda que algo avantajada. Por baixo de uma farta cabeleira loura não andaria longe pelo menos quanto ao porte, de uma escandinava recém-chegada ao caju. E havia, claro, a máscara propriamente dita, creio que comprada no Cândido e que nada deixava ver da cara.
      Passada grande parte do dia na  atarefadíssima busca e colecta daqueles precisos, chegou a hora  de nos destrajarmos. Mais complexa, a operação de calçar os sapatos de salto alto obrigou a um breve treino de andadura, umas quantas passadas sobre aquelas andas, que não sei quem, em dia de má inspiração, se deu ao trabalho de inventar.
      Ainda em casa, os dois criados, assistiram boquiabertos ao teatral desempenho do patrão, caminhando com passos inseguros, para cá e para lá no corredor da casa. Perante a caricata encenação, embora disfarçadamente, não se contiveram que não rissem. O que, devo dizer, me fez descrer do bom êxito da mascarada por vir. Engano meu, como vão ver.

     Não estando certo disso, deduzo, de recordação em recordação, que o baile terá sido no Sábado Gordo. Não é importante, mas gosto de balizar tão bem quanto possível, no espaço como no tempo, as recordações que alinhavo.
      Lá fomos para o recinto do baile, onde chegámos discretamente. Minha mulher longe de mim para diminuir o risco de reconhecimento, entrouxada no meu fato de treino, os pés a boiar em sapatilhas à beira da cova, boné às três pancadas, uma meia-máscara e um maço de jornais debaixo do braço, fazia um ardina alfacinha na melhor versão Stuartiana. Integrámo-nos fàcilmente no ambiente colorido, festivo e barulhento que tão bem se quadra com os folguedos do Entrudo.
     Evitando falar e disfarçando a voz quando falava, dancei, saltei, intriguei, mexi, brinquei… enfim fiz o que é suposto fazer-se em condições tais.
     Os paisanos eram em maior número do que as máscaras; e como é de uso, eram mais contemplativos do que actores das brincadeiras. Mas havia-os também que participavam. Topei com dois desses: o padre Eugénio e a Dulce Duarte.

     Após uma curta paragem na música, quando já começava a ficar cansado do rodopio e antecipava uma saída à francesa, chegou-se a mim o padre Eugénio, também ele curioso da identidade da louraça. Como convinha a desconversa foi inconclusiva, o que no caso não era difícil, já que mal nos conhecíamos. E, baile é baile, não tardou nada estávamos a dançar. Já não sei quem convidou quem. Ao som de alguma mexida brasileirada ali andámos aos saltos por breves minutos. Ele a tentar saber quem eu era; e eu, seguro por detrás da mascarilha, torneando escolhos, dando pistas falsas, fazendo-me de novas…
     A presença de alguém cuja identidade se não vislumbrava – carta nova num baralho por demais conhecido - acicatara a curiosidade de algumas pessoas; que redobrou quando fiz par com o sacerdote. Quem não resistiu a essa curiosidade foi a Dulce Duarte, ainda muito menina, que cirandava entre os pares e se chegou a mim a perguntar com as mãos: puxou a aba do vestido, as mangas, uma meia, a mala. E puxava com força: quase me rasgou o vestido. Tentei afastá-la com brandura. Nada. Num rodopio mais forte, dei-lhe um safanão. Com tão pouca sorte que resultou numa canelada. Lá se afastou, dorida, queixosa, coitada…
     Sabendo embora que não tive a intenção de magoar, ainda hoje me arrependo do pontapé que dei à moça pequena.

     Do que se passou depois, não tenho a mínima lembrança.

A missão de S. luís gonzaga de malatane
    
     Nunca mais dancei com o padre Eugénio.
    
     Fiquei a dever-lhe que me tivesse permitido usar o Hospital da Missão de Malatane, 


em Agosto de 1972, para uma pequena intervenção cirúrgica.

     A meu convite, o dr. Freixo Osório, cumprindo serviço militar obrigatório como ortopedista no Hospital Militar em Nampula e que ali me recompusera o joelho esquerdo aquando da fractura do menisco interno num futebol de praia, veio com a família passar quinze dias de férias a nossa casa em António Enes.
    
     Vistas algumas radiografias e observados os pés da Noélia, concluiu ser conveniente corrigir-lhe joanetes e calcâneos. Em boa hora. Quarenta e um anos passados não voltou a haver incómodos.



     A anestesista foi uma freira açoriana da Missão, a Irmã Espírito Santo.
     Fui constituído assistente de cirurgia para finalizar a operação, aliás com muito sucesso.
     Coube-me, alguns dias depois, retirar a alicate, os fios de Kirschner que enfiados nas falanges, imobilizavam os dedos maiores.
     Tal como Freixo Osório nada cobrei pelo acto médico.

                                                                                       
josé guerreiro
FZ, 08AGO2013

14.7.13

MISTÉRIOS DO PARAPATO
-Uma espécie de crónica serôdia-

O embrião deste escrito foi criado para o jornal ‘Macua’ e nele publicado há anos.
Nunca me aventurei a discorrer senão sobre vivências próprias, as que mais conspícua marca inscreveram na memória.
O tempo tem-se encarregado de aclarar algumas recordações que a par de ajustamentos semânticos, fui aditando à escrita; e daí versões sucessivamente diferentes.
Tomou forma neste conjunto de retalhos, uma súmula da minha viagem de guarda-marinha, efeméride tão importante neste ofício.  
O tema deu guarida aos mistérios em ‘A Voz da Abita’ conhecido blogue naval que também os publicou.  


Entre a inércia mediterrânica que desde sempre se me cola pegajosa e a tola pretensão de aceder a escrever alguma coisa porventura interessante, tenho-me balançado descontente, preocupadíssimo por não participar na feitura do jornal e afinal ansioso por fazê-lo. Ora imaginando bonitas frases ora caindo na vacüidade dos temas, revivo a angústia do estudante preguiçoso e cábula que conheci (fui) na juventude.
Ultrapassadas, por agora, pretensão e inércia, aqui estão os mistérios do Parapato:

Antes do fechamento do Canal de Suez, as viagens de guarda-marinhas em fim de curso faziam-se de hábito à volta de África. Era o périplo de África. Depois, passou a descer-se a costa Oeste, rodear o tormentoso cabo e ir por ali acima até à foz do Rovuma, inverter rumos e fazer a viagem de volta. Foi assim comigo.
Não fizemos a viagem desejada. Nunca se faz a viagem desejada.


Desrespeitando as regras, tinha feito uns rabiscos a giz no quadro da nossa sala de estudo com alusões aos pretendidos destinos para a viagem e que quase me valeram um castigo. De um convívio com cadetes italianos de visita a Lisboa no navio-escola ‘Amerigo Vespucci’, trouxe a idèia, que copiei, de contar os dias em falta para o fim do curso a partir dos cem dias. Por eles baptizada como ‘MAK p’ (de ‘mancano p giornni’), materializei a contagem no quadro, onde sei que durante uns anos fez carreira.

Não fomos ao Brasil como fizéramos constar na vedeta das cinco. Tampouco às Canárias, se bem me lembro. Largámos aí pelo meio de Agosto e viemos passar o Natal a casa. De permeio, muito mar, mais algum saber, uns quantos dias em terra, matada pouca da muita sede de vida e, convenho, um saldo final de satisfação.

No mês anterior à largada, Hailé Selassié II, Imperador cristão da Etiópia, visitara Portugal.
Esteve embarcado e navegou na fragata Nuno Tristão, que para melhor o receber foi alvo de alguns alindamentos em áreas como a camarinha do Comandante e a câmara de oficiais. 


A Nuno Tristão durou mais uns anos. Voltei a encontrá-la e fotografei-a junto aos Baixos do Tombali, frente à Ilha do Como, de bordo do contra-torpedeiro Vouga, quando este se preparava para a render na Operação Tridente, em fins de Janeiro ou início de Fevereiro de 1964.

Foi neste navio que embarcou a metade do curso a que me coube pertencer. Claro que ficámos contentes. Iríamos usufruir dos requintes dispensados ao Negus da Abissínia. Confesso que não dei por eles.
A outra metade do curso embarcou na mana Diogo Gomes. E andou menos contente quase toda a viagem. Não por falta de requinte. A coisa só melhorou com uma mudança intramuros: o oficial imediato foi despromovido a um patamar do tipo ministro sem pasta e as suas funções passaram a ser exercidas por outro. Gerir homens, comandar, é complicado. Nem todos sabem.

À chegada ao Mindelo, lá estava, como depois se tornou hábito, o Vicente, que vinha buscar roupa para lavar, mas se apresentava como ‘Vicente, piloto’, sendo que a pilotagem era imprescindível na noite despida de luz dos meandros da ilha. Bom piloto, o Vicente. Voltei pr’a bordo muito mais sábio depois de me ter conduzido ao espaço onde presenciei uma sessão do famoso 'cola-cola', interpretado por duas mulheres negras, avançadamente grávidas, alegres e luzidias.

Seguiu-se a Guiné. Assistimos pela primeira vez à cena da bóia de espera, com muitos binóculos assestados ao horizonte na proa e a oferta de uma grade de cervejas a quem fizesse o avistamento.
E o rádio-farol de Caió que tardava em dar sinal… e a sonda que indicava cada vez menos fundo… e as águas tão barrentas… De facto não era pêra  doce aterrar na Guiné; pior ainda se o Sol não tivesse aparecido para uma altura meridiana que garantisse a latitude. Bem, havia que aproar a Meca, medir o fundo o tempo todo e confiar… Confiar nas batimétricas, na carta… no profeta.
Ao fim, como sempre seria, lá íamos nós Geba acima em demanda de Bissau.

Não me lembro de ter ouvido falar sobre a rebelião no cais do Pidjiguiti, ocorrida apenas dias antes.
Admito que às vezes andava na Lua (e não ando?). Terá sido essa a razão?

Saído de um jantar-recepção, com mais uns quantos, integrei uma caçada que ficou célebre entre nós, Curso de Pedro Nunes. O alvo seria um felino feroz. Falava-se em onça. A direcção da expedição, já muito nocturna, era do chefe do cais de Bissau que conduzia um jipe e fornecera as armas. Por onde andámos, não sei. Mas rodámos muito. Tampouco fiquei com uma noção clara do tempo gasto. Recolecto na memória  a excitação vivida, a expectativa do encontro com a presa, os saltos do carro… e finalmente dois pequenos olhos brancos faíscando sob a luz do farolim. Ràpidamente, uma espingarda apontada…
- Não atire, não atire!... gritou o homem.
Não era para menos. Estávamos num quintal dos arredores de Bissau e os olhos eram de um gatinho.

Só no regresso, a navegar para Norte, visitámos o Príncipe. Depois São Tomé. Mas porque quero acabar em Moçambique, falo desde já deste pequeno arquipélago. De pouco me lembro aliás. Houve quem fosse ao Príncipe. Eu, não. Parvamente. Fiquei sem conhecer o sabor de um gabadíssimo guizado de macaco. Em São Tomé estivemos fundeados na Baía de Ana Chaves. Fomos à roça Água Izé. Claro, era quase obrigatório. Em expedição posterior, recordo-me bem de andar a apanhar camarão, empoleirado em arbustos. Não se riam. Era onde muitos ficavam após as cheias.
O solo, de um castanho gordo e úbere, a vegetação pintada a verde forte, tudo grande, tudo luzidio.
Uma terra feita por um deus inspiradíssimo.

Angola. Uma costa alta quase toda. Bem definida. O recorte na carta, reproduzido ponto a ponto no monitor redondo do radar de navegação, o velhinho Decca 974. Tal uma, tal outro.
Fizemos manobras com os belgas que nos acompanhavam desde Lisboa. Interrompidas enquanto estivemos em Cabo Verde e na Guiné, terminaram ao fazerem-se ao Zaire. Uns quantos navios. O ‘Kamina’ era o combóio. Alguns draga-minas belgas e nós, integrávamos a cobertura. Não sei qual terá sido o eufemismo para submarino. Foz do Zaire e costa adjacente, foram o palco final das manobras. Seguimos para Luanda. Dias depois voltámos. Fundeámos em Santo António do Zaire e Cabinda, onde a Diogo Gomes perdeu o ferro de estibordo, razão porque não subiu o rio até Nóqui. Foi só até Boma e voltou a Luanda para recolher um ferro emprestado, do Carvalho Araújo.

Entrados no Zaire fomos atracar no cais de Boma, na margem direita, no Congo Belga.
Extensão suficiente de rio para que o atrito da suspensão ferrosa na água tivesse deixado os cascos limpos de caramujo, luzidios, prontos para serem pintados.
Houve alguns eventos sociais, para rematar o êxito das operações, como de costume.
Fez-se um jogo de futebol, entre portugueses e belgas. Perdemos por 2 a 1. Em disputa uma enorme taça.
Quando com as equipas formadas para a cerimónia de entrega do prémio e os capitães lado a lado me preparava para aplaudir o adversário, o Chefe Militar belga fez menção de me entregar a taça. Balbuciei umas palavras de recusa, insinuei com um gesto de mãos que a entregasse ao vencedor, mas o senhor tinha-a fisgada. Lancei um olhar de socorro ao Comandante Naval de Angola de pé na tribuna que me fez um sinal de assentimento.
Muito obediente, recebi a taça que tinha perdido. Em tais apuros e num francês exaurido pela falta de uso, nem imagino os termos em que me terei mostrado agradecido. Uma cena algo surreal.
Dali fomos - taça passando de mão em mão - visitar a fábrica de cerveja Primus. E foi um troféu cheio e bem pesado que pus à boca para início da rodada cervejeira. Alegria a rodos. Excessiva nalguns casos.

Em Luanda, fizemos o nosso estágio de hidrografia.
Lá teremos deixado modesto contributo para o levantamento de um canto do porto.

Julgo ter sido a descer esta costa, que uma tarde, o comandante se mostrou na ponte e interpelou um dos dois guarda-marinhas de quarto, que calhou fosse eu:
- Ó guarda-marinha… qual é o rumo?
- Um nove três, senhor comandante.
- Bem me parecia… bem me parecia! – comentou com ar sabedor, depois de humedecer o indicador nos lábios e expô-lo espetado à aragem.
Este nosso camarada era um pândego que tendo sabido rodear-se de uma guarnição de oficiais de muito mérito fez da viagem um cruzeiro de férias. Nada gabarola, exibia-se para os mais novos:
- Debaixo deste cadáver já passaram mais de duas mil mulheres!

Aterrámos em quase tudo que é baía na costa angolana.
Nunca mais atingíamos o escalão superior do subsídio de embarque.
Mas lá chegámos à União Sul-Africana. Fomos para a base naval de Simmonstown, onde atracámos quase noite. Noite, que varei em Cape-Town, a 25 milhas, por terra. E que narrada, daria só por si um romance. Um dia conto, se perder a vergonha. Foi tão mau, que se calhar não perco.

Aqui, nos mares que os nossos maiores romperam e com cujos Adamastores partilharam segredos e mitos, éramos esperados para participação num conjunto de exercícios designados CAPEX 59. Mais exigentes do que os tidos com os belgas. Uns quantos navios sul-africanos, nós e duas fragatas inglesas: Linx e Leopard. A esta última foi imposta uma quarentena e acabou por não participar.
Escalámos Durban. E também Port Elizabeth. A “Diogo Gomes” foi a East London em vez.

Ficaram-me nos olhos pelo inusitado, os casacos de cores vivas às risquinhas que os muitos madeirenses que simpàticamente nos convidavam, usavam nos clubes. Com os emblemas sobre o bolso, autenticavam a ascensão na escala social e o sucesso da sua aventura.
Sempre pronto para novas tecnologias, em Cape Town encantei-me num pequenino receptor de rádio transistorizado que cabia na algibeira do casaco. Novidade absoluta. Comprei-o por onze libras. Uma fortuna para guarda-marinha. Ainda o tenho. E se calhar funciona.

Lourenço Marques foi uma surpresa. Mas senti-me mais em casa na Beira.
Com familiares em ambas as cidades, os primos 'coca-colas' ofenderam-se com a preferência.
Da Ponta do Ouro a Palma, onde os navios puderam entrar, entraram.
Futebol e basquete foram pretextos de aproximação às populações. Visitas a fazendas e fartas comezàinas, igualmente. Lembro-me de uma bruta basquetebolada no pavilhão do Malhangalene, mas já não sei contra quem jogámos.
Ao longo da viagem, o contacto com as populações foi sempre aturado. Tornou-se-me visível um tratamento mais negativamente descriminado para com os nativos de Moçambique, relativamente aos de outras paragens sob administração nossa. Concisamente… mais racista.

É certo que o general De Gaulle oferecera dois meses antes a autodeterminação à Argélia e que o Ghana já era independente desde 1957. Mas as lutas independentistas permaneciam apenas latentes; e quem nesse tempo viajasse por África (quase toda), fá-lo-ia com inteiro à-vontade. Moçambique não fugia à regra – para a banja de Mueda faltavam ainda sete meses. Por essas e outras razões, as nossas incursões por terra adentro eram de todo desatentas à coisa política. Um pouco menos à realidade social.

A Primavera meridional ia a meio.
Foi por esse tempo que avistámos a Ilha de Mafamede, escolhida  pelo sultão Hassane para sua sepultura.
Com a ilha do sultão na esteira, as fragatas Diogo Gomes e Nuno Tristão, cruzaram a barra no preia-mar, que os fundos são baixos e o diabo tece-as; e torcendo e retorcendo rumos, entre bóias e sapais chegaram frente à Vila de António Enes e fundearam. A terra já antes fora Angoche e tornou a sê-lo depois da independência, mas nem portugueses nem moçambicanos lhe conseguem acertar com o nome: Parapato, que é como lhe chamam os naturais.

Caras escanhoadas e ardentes de Acqua Velva ou barbas aparadas com rigor geométrico (era a primeira vez que as podíamos deixar crescer), banhos tomados a correr, na pouca água que a aguada deixava ainda escorrer, mal secos, que melhor não se podia, tal a humidade, vestimo-nos com roupa adequada ao trópico. E com a ansiedade costumeira aguardámos a hora das licenças, desta vez mais cedo.

Nas águas calmas do porto, o pequeno escaler a motor, ‘gasolino’, como lhe chamava o estado-menor, navegou bem apainelado e com todos os sinais da Ordenança, mas ronceiro, para a ponte-cais.
Azar! A água já escorrera, ocorria o baixa-mar e ficámos distantes. Entre nós e a ponte… só matope.
Mas a mais primária solução aguardava-nos atenta e apresentou-se.
E foi sobre alguns ombros, à vista bem pouco atléticos, disponíveis na mira de uma quinhenta, que com o seu quê de ridículo nos deixámos levar.
Mal dotado para equilíbrios, a cada momento preocupado em não cair, perdi com pena minha, a visão decerto risível, de uns quantos pares de pernas pretas engolidas pelo matope, trôpegas do peso acrescido, num vaivém lento e desengonçado entre a embarcação e terra firme; e anormalmente longe das pernas, mãos brancas, enclavinhadas umas sobre carapinhas, agitadas outras, frenéticas, tentando firmar-se no ar, ondulando tudo numa coreografia de bailado burlesco.
Com surpresa nossa, ninguém caiu.

A vila era pequena.
Começámos por ir ver o campo de futebol, onde pouco depois jogaríamos uma partida com a equipa do burgo. Era um rectângulo de areia solta delimitado por uma espécie de corrimão de madeira, pregado sobre espeques, por sua vez espetados no solo. O raro casario contígüo fazia adivinhar uma urbanização que começava a desenhar-se. Assim foi anos mais tarde. E ao campo de futebol foi destinada a incumbência de jardim.
Conhecida a arena, dispersámo-nos, cada um em busca do seu ângulo próprio de conhecimento mais detalhado da povoação.

Não sei o número de ordem do sentido peculiar usado pelos homens do mar em busca dos locais que conscientemente ou não desejam encontrar. Certo é, que uma vez o pé em terra, não tardam a ser vistos nos Cais de Sodré e Bairros Altos dos chãos que calcorreiam.
Nos meus saüdáveis quase vinte e três anos e após não sei quantos dias de mar, mal dei por mim estava no Ingúri.


O bairro não tinha ainda o aspecto ordenado, ortogonal, que um administrador lhe deu nos anos sessenta.
Era um granel de cubatas sem rei nem roque, onde só por sorte nos orientávamos.
Que Dédalos terá arquitectado o intrincado labirinto de cubatas que fazia o Ingúri, é uma dúvida que flutuará para sempre no mar das minhas ignorâncias. Mas quero crer que o desenho radicava na noção dos 'Qasbah', que ali chegara pelo convívio aturado com os comerciantes árabes, que além de mercadoria levaram o Alcorão aos macuas.



Na altura não me detive na busca de razões para o desenho daquele aglomerado. Tampouco para a fé professada pelos moradores. Ou para ser mais preciso, pelas moradoras.

E numa palhota escolhida a esmo entre as que me pareceram adequadas, fui durante algum tempo visita bem recebida e benquista. Tempo esse, em que a ampulheta não funcionou. Não a virei.

Mal medido o tempo gasto e o caminho caminhado, encetei o regresso a correr, única maneira de chegar a horas ao jogo. Ocorreu-me afinal, que tinha um relógio no pulso. E corri, corri… tendo de parar amiúde para retomar fôlego. Claro.

Não era um habilidoso p’ró futebol. A bola, às vezes, até me atrapalhava um pouco.  Devia à velocidade e ao pontapé violento, a ponta-direita que ocupava na equipa.
Velocidade e pontapé violento, os mesmos que ‘Os Balantas’ da Guiné viram, para o convite mais tarde feito para jogar por eles.
Mas voltemos à desabalada corrida para o jogo de futebol.
Foi ainda entre palhotas, que um dos pés – que toda a vida me têm traído – mal posto sobre um sulco que a chuva cavara, me atirou ao chão. Escabujei, gemi, impei… temi a necessidade sem apêlo de gritar pela ajuda de alguém. Mas quis a sorte que a torcedura não tivesse sido tão violenta quanto parecera e acabei por poder levantar-me. A custo, inicialmente a muito custo, lá me arrastei, mancando, direito ao centro da vila.

Assisti ao resto do jogo apoiado à vedação. Melhor assim.
Ainda bem que não pude jogar. Mesmo sem a queda, que poderia ter feito em campo?
Teria sido um fracasso.
Senti isso com uma evidência tal, que recebi a entorse como um providencial acaso.


É que, meus caros, parte grande da minha energia, porventura a mais rica, tinha-a deixado naquela bela e enigmática moça macua que tão bem me acolhera… e me iniciara nos mistérios do Parapato.

José Guerreiro
Fuzeta, 14 de Julho de 2013


  

8.7.13

singradura com algum balanço

                                                                           "A criança que fui chora na estrada.
                                                                           Deixei-a ali quando vim ser quem sou;..." 
                                                                                            Fernando Pessoa

Deixando o Lobito

Desde os dez anos que estar junto dos pais e da irmã era circunstância rara. Não lhe foi por isso estranho, abalar sem eles para Lisboa. Inusitado, foi que as férias grandes de três meses, que merecera, tivessem encolhido para dez dias. Mas os anos lectivos estavam – e bem – sincronizados com as estações do ano e não com o calendário civil; havia que apanhar o combóio do segundo trimestre, já em marcha na Metrópole. Além disso, duas semanas de mar não podiam senão ser creditadas como tempo de lazer. Foi debruçado no convés da segunda classe do ‘Império’, o adeus que fez para a muralha do cais do Lobito, de onde lhe acenavam os seus. 


Com o paquete navegando devagar baía fora, foi revendo como em filme a parte da meninice feliz que ali deixava:

Os longuíssimos passeios de bicicleta, à tarde, em bando - uma vintena de moços e moças - a caminho do Rádio Clube (CR6RK), ou da Restinga, pedalando para onde quer que fosse, em chilreada que por vezes era gritaria;

A ponte-cais da Capitania, onde pescava roncadores – uma espécie de mucharras – tantos quantos quisesse; ou garoupas de palmo e meio, que fritinhas, ficavam de lamber os beiços; para seu mal, também de vez em quando, um ou outro ‘baiòcu’ que não conseguira cortar a linha à dentada, estragando-lhe ainda assim a pescaria;

Nas pedras a descoberto na baixa-mar por debaixo das casuarinas junto ao paredão branco com ameias, 


ficavam agora em paz os caranguejos, primos dos que usava apanhar com mestria, de parceria com a irmã, até encher a vasilha que servia de medida. Vertidos depois na panela, temperados e cozidos pela mãe, quantas vezes lhes foram lanche…

E o barco de bimba comprado pelo pai por cem angolares, trazido a remos do Lobito Velho por um marinheiro da Capitania…  Bimba, uma madeira esponjosa, uma espécie vegetal de grande poder de flutuação, decerto aparentada com o papiro. Os troncos justapostos e apenas cravados com grandes pregos de pau, mesmo sem painel de popa, faziam uma embarcação inundada mas inafundável. Era a sua gôndola privada. Remando com água pelos artelhos usava-a para passear, pescar e mergulhar. Que cem angolares tão rendosos em divertimento!


Mais além, ao rés-do-mar, via agora a piscina de água salgada em que gastava as manhãs, ora mergulhando, ora esbracejando com estilo, ora à torreira do sol com a maltesaria de férias;

Alongando o olhar para ré, ao fundo, por detrás do saco da baía adivinhava o Compão, a Caponte, a Rua 28 de Maio e tantos outros lugares, onde o levava a ‘Raleigh’ de todos os momentos, para importantíssimas tarefas, como comprar ‘O Mundo de Aventuras’, encomendado na Livraria Magalhães; ou ir à Luso-Americana pedir selos ao gerente, o Senhor Guardado; ou, ainda pelos selos, subir aos sempre muitos navios belgas atracados e aproveitar para melhorar o francês.  À cata de mais umas estampilhas também ia ao Hotel Esperança, onde o Fernando, filho do dono, e já conceituado filatelista, por vezes lhe dava uns selitos, sempre acompanhados de preciosos ensinamentos sobre a matéria. Foi aliás através dele que se fez membro de um clube internacional de trocas.

Virado para o continente, para o Lobito Velho, viu-se com o pai em casa do Senhor Américo, também algarvio e companheiro na Marinha, de onde saíra para se aventurar com sucesso a fazer farinha de peixe. Estavam atentos ao relato da bola. Jogava-se um Portugal-Espanha. Contra o costume, vitória lusa . Concentrados nas peripécias do jogo, não se deram conta de que o impúbere os imitava no festejo de cada golo com longos sorvos de Laurentina. Não tardou que se sentisse tonto. Foi a sua primeira vez. Consciente do risco, saiu sorrateiro e foi refazer-se, caminhando e respirando o ar fresco junto ao mar;

Como não lembrar os passeios à Catumbela ao Domingo? Sentado no quadro da ‘Raleigh’, iam até uma oficina junto ao Mercado onde escolhia uma ‘burra’ de aluguer e lá iam então, cada um em sua bicicleta, pedalando devagar, conversando, olhando a paisagem, nove quilómetros para lá, nove para cá;

Lembranças para sempre…

Mais acrescentaria ao filme – matéria para argumento não lhe faltava - mas afinal o ‘Império’ passou entre o Farol do Lobito e o Farolim da Restinga e chegou a mar aberto.

“Aqui CR6AA, posto emissor de Álvaro de Carvalho”, imaginou ter ouvido, como última despedida, de uma voz vinda da ponta da Restinga.

Luanda – S. tomé – Funchal – Lisboa

No dia seguinte, 3 de Janeiro de 1951, estava em Luanda. Passeou pelos lugares que ainda lembrava de cinco anos atrás, mas não tendo amigos para companhia, integrou-se sem dar por isso no circuito dos outros viageiros e aterrou na baixa. Foi à Livraria Lello e comprou ‘A diabólica casa isolada’, com que mais tarde veio a iniciar a colecção Agatha Christie. Devorou o livro com rapidez e arrependeu-se de não trazer mais para a viagem. Talvez em S. Tomé…


Mas não conseguiu. Tudo quanto lhe ocorre da escala ali feita, é a aterradora elegância de um enorme tubarão esbranquiçado nadando preguiçosamente sob os holofotes pendentes da borda, quase junto à água.

Tinha acabado de fazer catorze anos e era essa a idade que aparentava. Porém, habituado desde cedo a arvorar-se e de algum modo ser, senhor de si próprio, sentia-se mais velho. Não admira por isso que se tenha posto a jeito para completar a mesa de ‘King ’ que três adultos porfiavam conseguir sem sucesso. Não havia muita gente na segunda classe; e para além da bisca e da sueca pouco mais se jogava. Olharam-no com um misto de espanto e desdém que aumentou quando depois de saber que o jogo era a dinheiro, manteve o propósito de os confrontar, já que cada ponto valeria apenas um centavo. E em verdade, à chegada ao Funchal tinha acrescentado quase cinquenta escudos à sua riqueza.

Riqueza, de facto. Saíra do Lobito com um conto e oitocentos que os pais lhe haviam dado para despesas iniciais na capital e também a título de prémio pelos bons resultados escolares. Riqueza algo mitigada no Funchal, onde não resistiu ao chamariz das exposições de artesanato. Nos bordados, não se dispensou de comprar uma bonita toalha de chá para a mãe e mais uns quantos lencinhos não sabia bem para quem. Para o pai, levou uma caixa de madeira para cigarros. Ainda bem que para si nada foi cativante assaz; e pôde chegar a Lisboa com mais de um conto e trezentos.

O ‘Império’ atracou na Rocha do Conde de Óbidos na manhã de 16 de Janeiro. Esperava-o o Senhor Santos, Sargento Artilheiro nomeado para Escrivão da Capitania do Lobito onde sucederia a seu pai e a quem este pedira para ‘tomar conta do rapaz’ até embarcar para Angola. Depois de mútua e rápida apresentação, tomaram um táxi para o colégio onde ficou internado. Mesmo ao lado da Mata de Benfica. Vinte escudos, já com gorjeta, foi o preço da corrida. 

Colégio instituto lusitano

Feito um rápido reconhecimento do novo espaço, encetou no dia seguinte, uma sexta-feira, a freqüência do 5º ano, cujas aulas tinham começado havia já três meses e meio. Uns quantos alunos internos com os pais em África mais alguns alentejanos; e um número grande de externos das redondezas. Como sempre a adaptação foi fácil e em dois ou três dias estava integrado.

O Colégio Instituto Lusitano funcionava num edifício antigo com pretensões a palacete, ao fim da Avenida Grão Vasco, 


paredes meias com o Parque Silva Porto, frente ao busto do pintor que lhe dá nome.


O proprietário e director, Dr. Moreira, era um homem só, entrado em anos, a quem a malta tratava por ‘Pai Moura’. Passava por ser católico devotado, tinha sido ultrapassado pelo tempo e dirigia o estabelecimento como um ‘trust’ familiar, dando güarida a três ou quatro parentes. No leque de professores, todos homens, cabiam tanto militares desviados de funções, quiçá por razões políticas, como um estimável octogenário que fôra condiscípulo de Augusto Gil na ‘sagrada Beira’ e fazia da língua portuguesa uma devoção. Quanto a prefeitos, conheceu dois: um que combatera pelos rèpublicanos na guerra civil de Espanha, outro que freqüentara um Seminário e quase fôra ordenado.

Sentiu muito o frio daquele Janeiro, tão diferente dos que suportara nos quatro invernos do planalto huílano. Foi-lhe custoso ter passado em tão poucos dias, do Verão tropical do Lobito para o Inverno daquele inóspito casarão velho, de pé-direito tal, que mal revelava os requintados ornamentos de estuque que enriqueciam os tetos. Era ainda noite e já numa sala cheia de ar gelado que parecia renovar-se a cada momento, assistia à aula de Português, sentado numa carteira, que mesmo sendo de madeira, tão pronta estava em roubar-lhe o calor do corpo. O branco ártico das paredes e das portas imensas não ajudava e fazia juntar ao das mãos o enregelamento dos miolos. Até as maçanetas, lindas, de louça, quando olhadas, reflectiam frio. À secretária, o Dr. Direito, descido havia muito da Serra de Estrêla, parecia não sentir o mesmo desconforto. Sentia outro, o dos muitos anos. Com pouco cabelo, todo branco o que restava, fitava-nos com olhar àgüado e pálpebras vermelhas, por sobre os meniscos em quarto de lua, impostos numa quase invisível armação de arame brilhante:

- “…Vereis amor da pátria, não movido de prémio vil, mas alto e quase eterno;…”

Sendo que estudante é aquele que estuda, sempre dera pouca verdade literal à palavra. Não faltava às aulas, mas dava-lhes pouca atenção, preferindo abrir a Selecta Literária lendo e relendo os textos do fim do livro. Quantas vezes se terá emocionado coma leitura de ‘A aia’?  Acabadas as aulas, mais que estudar, apreciava as conversas, as disputas, as amizades com os companheiros; e procurava estar em todas. Já antes assim era e não lhe faltou coerência.

Bêco do Surra

A semana-inglesa era almejada mas não conseguida ainda. Do colégio saía porém ao princípio da tarde de sábado. Enfiava-se no eléctrico nas Portas de Benfica e saía nos Restauradores, frente ao Éden.  Curioso e interessado, caminhava pela Baixa, observando tudo. Anúncios, montras, pessoas… estas muito apressadas, sisudas, agasalhadas, bem vestidas, brancas quase todas, apenas um preto de longe em longe a dar à paisagem um ar de familiaridade. Gostava de andar de eléctrico. De preferência os que tivessem assentos de palhinha que melhor lhe recebiam o corpo; mas nem sempre se dispunha a esperá-los e continuava a marcha rápida para casa, onde o esperava a Dona Dôres, de sorriso pronto, a perguntar-lhe se tinha fome.

Por opção ou fatalidade, o casal não tinha filhos. O Senhor Santos era um homem inteligente e vivido. Dona Dôres, uma dona de casa confinada a ser dona de casa, porventura mal amada, marcada pela solidão e a quem a resolução do instinto maternal teria tornado alegre. O arremedo de maternidade que os cuidados tidos com aquele menino lhe propiciavam era uma bênção. Não era bonita, faltava-lhe anca, tinha buço pronunciado e verbo difícil, mas era atenta, bondosa, generosa…

A casa, um primeiro andar alto, ficava numa esquina sombria do Bêco do Surra, quase ao cimo da ladeira. Era uma construção mal amanhada, de paredes exteriores a que o prumo fôra mal apresentado, com dois janelicos que mais impediam que deixavam entrar luz. O interior, muito despido, não convidava ao lazer e por isso, para além dos tempos de comer e dormir, logo que podia escapava-se para a rua. Subidos uns quantos degraus estava na Rua dos Remédios, de onde, encostado ao gradeamento de ferro frente à Leitaria Alsaciana, conseguia ver uma nesga de rio. Em pouco tempo já o olhar lhe fugia para uma janela alta na Calçada do Forte onde se assomava uma cara bonita. Não tardou, percebeu que a moça também o olhava.

Tornou-se freguês da leitaria, desenhada com o traço e a cor com que ao tempo se faziam aqueles estabelecimentos, mais tarde desaparecidos, na sanha de promoção a pastelarias.

- Senhor Augusto, por favor, traga-me um galão e um bolo de arroz.    

Ainda a farinha de arroz concorria com a de trigo na feitura do bolo e o tornava tão diferente e saboroso, tão singular e nosso. O galão saturado de açúcar e o bolo, nem sempre lhe satisfaziam o apetite doce e rematava com um pedação de abóbora cristalizada que o sentava à mesa mais algum tempo, a fumar um cigarro e a fazer de homenzinho. Depois, atravessava a rua e ia postar-se ao varandim sobre a Rua do Museu de Artilharia, de atalaia à tão olhada janela.

O Senhor Santos usava chapéu à diplomata. Os homens adultos do início dos anos cinqüenta ainda faziam do chapéu um adereço obrigatório. O modo como era posto na cabeça, direito ou cambado, o estar mais ou menos enterrado, tal como o desenho do gesto cortês com que lhe pegavam para um cumprimento, ou o tamanho do concâvo da copa, individualizava-os. O chapéu à diplomata, pretensioso, era por norma cinzento, de bom fêltro, copa alta e aba enfeitada a cetim revirada para cima. Chapéu caro, dava a ilusão de um estatuto social superior. Nas relações do Senhor Santos, alguns amigos não o dispensavam.


‘Tomar conta do rapaz’ fez com que o rapaz viesse a conhecer meia-dúzia daqueles amigos. Eram todos sócios do Clube Recreativo dos Bem Intencionados, com sede num primeiro andar da Rua do Paraíso, onde se juntavam à volta de uma mesa grande, para disputas de baralho. Jogavam o ‘burro’. Com tanta apetência que tinha para jogos, não chegou a entender o mecanismo completo daquele. Parecia-lhe uma espécie de ´poker’ fechado. Havia quem falasse em ‘blefe’. Rejeitavam-se cartas, mas ainda se podia ir buscar jogo a esse resto. Dizia-se que se ia ‘às cascas’. Mais do que ao jogo em si, dava atenção aos gestos e expressões dos jogadores e ao manuseio ritmado das fichas, ora chocalhadas entre os dedos, ora percutidas irritantemente sobre a mesa. Como quase sempre é, havia à volta do pano verde gente a quem perder não faria diferença e outra que buscava um complemento do salário e só de raro não voltava a casa cabisbaixo.

Por inesperada coïncidência, muitos eram adeptos do clube da sua simpatia. Passou a ir com eles ver os jogos que aconteciam nas Salésias, domingo sim, domingo não. Maior coïncidência ainda, foi ser o pai da cara bonita da janela quem o levava ao futebol na sua reluzente arrastadeira Citroën preta.  Fez-se sócio de ‘Os Belenenses’. E não tardou que num domingo – 18 de Março - a filha acompanhasse o pai. A proximidade encantou-o. De combinação em combinação, a gente grande decidiu ir à noite ao ‘Royal’, ver o ‘O terceiro homem’. A juventude ficou sentada lado a lado.  Olhos fixos nas imagens mas a mente olhando a cadeira ao lado, roçou pela dela a sua mão. Invadiu-o uma sensação nova, complicada, quente e esquisita, que o arripiou. Meses depois, já morando com os pais e irmã, esperava-a à saída das aulas, acompanhava-a a casa e diziam as banalidades em moda.

rua do paraíso

De partida, o Senhor Santos passou a tarefa de ‘tomar conta do rapaz’ ao Senhor Eduardo, um amigo chegado, com quem o moço já estabelecera laços de simpatia. Casado e com uma filha de vinte e um anos, muito unidos, faziam uma família que sentia como se fôra dele. Passou então a ser recebido e a dormir aos sábados e domingos, no primeiro andar que habitavam na Rua do Paraíso. Casa modesta e aconchegada, onde se sentia muito bem. Lia os livros disponíveis na sala e já não descia tanto à rua. Continuava freguês da leitaria, e ia conhecendo mais gente: os gémeos Ferrari, o Joaquim Campos, gabado árbitro de futebol, o Manecas, filho do Senhor Elísio, com grande talento para desenho, o Albano da sapataria, etc.

Estava-se em Alfama e vivia-se uma vida de bairro. Nas proximidades toda a gente se conhecia, se cruzava a caminho da praça em Santa Clara e parava para uns dedos de conversa. Uma vida calma, com algumas dificuldades mas sem grandes sobressaltos.

A duzentos metros, mais acima, inacabadas e paradas, jaziam as obras de Santa Engrácia já em desesperança de que viessem a ser igreja. Passava lá às vezes. A grande espessura das tábuas que haviam vedado o acesso ao interior não fora convincente. Os pregos - quase cavilhas  -  que as tinham unido, retorcidos e disformes, ainda presos pela cabeça, eram uma ameaça para quem quisesse franquear a abertura praticada.  Nem por isso teriam sido poucas as aflições intestinais que ousaram consegui-lo. Olhando pelo buraco, via-se bem a imensa retrete em que fôra convertido aquele amplo chão, ainda não abençoado.  O zimbório monumental que lá do cimo escondia a estrumeira, não conseguia disfarçar o desagrado.

O Inverno não avançara o suficiente para que não fosse noite ao sair para o colégio às segundas-feiras, mas o fresco matinal já em nada se parecia com as madrugadas gélidas que arrostava quando dois meses antes dormia no Bêco do Surra e por ali deslizava sobre o empedrado liso e húmido direito ao chafariz  e à Rua da Alfândega. Agora descia a também muito pronunciada ladeira da Calçada do Forte e num pulo estava em Santa Apolónia. Apanhava o eléctrico dos operários e em poucos minutos, por quatro tostões, estava na Praça da Figueira e saía. Caminhava até aos Restauradores, onde quase sempre, aguardando passageiros para Benfica,  encontrava parado nos carris um eléctrico da carreira nº 1.

Escolhido lugar junto a uma janela, abrigado quanto possível, aguardava o tilintar da sineta que anunciava o início da viagem, já conhecida de còr, mas que sempre lhe parecia nova. Encantavam-no em especial os anúncios luminosos e coloridos de néon, completa novidade. Quando passava pelo Rossio não se cansava de olhar a simulação de galope dos cavalos que puxavam o coche do rèclamo ao ‘brandy’ Constantino. Enquanto subia a Avenida da Liberdade não lhe faltavam chamarizes de luz que apreciava como da primeira vez. Na António Augusto de Aguiar gostava de ver a seqüência ‘Scania’, ‘Tatra’ , ‘Minor’ a azul e mais acima, a amarelo, ‘Instituto de Beleza Arminda’. Ia balizando o conhecimento da cidade com os anúncios, mas também com prédios ou acidentes de terreno estéticamente mais apelativos que inscrevia na memória com facilidade. Era Palhavã, era o paralelipípedo do Instituto de Oncologia, vinha o Jardim Zoológico e entrava-se na interminável Estrada de Benfica. Chegado entretando o dia, tudo ganhava côr e vida. Àquela hora o eléctrico corria veloz, parava raras vezes, havia poucos passageiros, o revisor se calhar ainda dormia e só o badalo puxado pelo cordão de sola estendido por toda a composição fazia de vez em quando tinir a campaínha a pedir uma paragem; ou mais forte e vibrante, a dar sinal de passagem, soava o alarme exterior, junto ao solo, também ele ferro contra ferro, accionado por um pedal sob pèzada do guarda-freio.

Em Benfica, a pouca distância da igreja, saía frente à ‘Panificadora do Sul’ onde entrava para comprar um papo-sêco acabado de sair do fôrno, quentíssimo. Continuava a pé pelo mesmo passeio até à esquina da papelaria do Fontan e virava à esquerda, já na Avenida Grão Vasco. Alguns passos andados, entrava numa taberna de portas azuis ali abertas ao povo bebedor, sentava-se a uma mesa e pedia um queijinho fresco, mas acrescentava para obtenção de estatuto e como credencial para uso do espaço, um ‘copo de dois’ de tinto. Entalava o queijo no papo-sêco, saboreava com prazer o frugal e invulgar mata-bicho e num minuto estava no Instituto Lusitano pronto para a primeira aula.

Sessenta e dois anos passados, é interessante, em tempo de tanta dedicação à finança, contabilidade e orçamentos, deixar aqui em letra de forma, o custo do regresso ao colégio em cada manhã de segunda-feira: os já ditos quatro tostões do percurso de Santa Apolónia à Praça da Figueira; mais dez tostões do eléctrico dos Restauradores a Benfica; mais outros quatro tostões do papo-sêco; e ainda cinco tostões do queijo e outro tanto do vinho. Tudo somado, transportes e pequeno almoço, gastara vinte e oito tostões – dois mil e oitocentos réis, ou, na verdade, dois escudos e oitenta centavos.

Mar rugoso

No colégio, era-lhe mais simpático o grupo dos que ali andavam por andar, faziam do estudo uma desobrigação e se ocupavam em futeboladas, fugas ao prefeito em busca de sítio seguro p’ra fumar, histórias de pretensas vivências de gente grande e outras ocupações igualmente enriquecedoras. Tinha uma preparação escolar básica muito boa e nela confiava. Só conhecera bons professores. Com Dona Conceição Martins em Faro, com os professores Canedo e Vieira em Moçâmedes; e com o conjunto docente de excepção que encontrou no Liceu Nacional Diogo Cão em Sá da Bandeira, com todos eles e algum estudo não parou de aprender. Porém, a circunstância de crescimento que vivia somada à vontade de férias que não tivera, fizeram-no desembocar num quase vazio de vontade e descuidou por completo a habilitação nas matérias ensinadas desde Outubro, quase quatro meses em que não estivera presente. Para compôr o quadro fazia profissão de dúvida quando lhe afirmavam ser difícil o exame do quinto ano. ´Cantando e rindo’ ia gastando o tempo alegremente. Alegremente.

Descoberta há muito a masculinidade, não se cansava de a confirmar amiúde, esquecido já da puberdade difícil que tivera, das recomendações assisadas do Delegado de Saúde de Sá da Bandeira e das há muito acabadas bòlinhas negras de cânfora receitadas, que tinham afinal tido efeito contrário, dir-se-ia quase perverso. Fazendo jus à fase de maturação que atravessava, começava a ter olheiras e o rosto alongava-se-lhe encovado. Na versão curta e concisa da avó, andava ‘chupado das carochas’.


Nada lhe andava a correr bem. Na véspera da chegada dos pais, de regresso à Metrópole, numa incursão vespertina à Mata de Benfica onde às vezes ia sonhar estiraçado na relva, atirou-se ao chão como se o fizesse sobre um colchão, amparando a queda de costas, com as mãos. Alguém ali deixara uma lembrança, um osso bicudo e rijo que se lhe espetou no cutelo da mão direita, penetrando de tal modo que a ponta ficou a espreitar entre os dedos anelar e mínimo. A dor foi grande. Naturalmente. Guinchou um pouco quando retirou com cuidado o osso a mais, voltou ao colégio e mostrou o resultado ao director. Levaram-no a  um consultório na Estrada de Benfica onde foi observado por um médico que franziu o nariz. Sôro anti-tetânico, uma ‘micina’ qualquer tomada de poucas em poucas horas e contrôlo da temperatura ao longo da noite, que foi de S. João. Assustou a mãe quando no dia seguinte se apresentou no cais, de braço ao peito, pálpebras pendidas e um olhar vago e longínqüo de zombie.

Perto do consultório médico, entroncava na Estrada uma avenida que reconheceu, por já lá ter estado um par de vezes para ver cinema, numa dependência do Benfica clube. Aliás, uma desilusão de cinema. A luz projectora, muito fraca, punha-lhe à prova os olhos e em evidência a miopia encontrada aos doze anos num rastreio feito no liceu e ainda não corrigida, lembrando-lhe o refrão da cantiga plasmada numa brasileirice popular e posta em palco a propósito pelos finalistas: ‘Doutôrzinho, isso não se faz… Deixe a nossa vista em paz!’. Embora já gostasse muito de cinema e não houvesse outra sala nas imediações, não insistiu.

Quase acabara Abril quando morreu Carmona. Algum tempo decorrido, soube-se a data da ida às urnas. Perfilou-se Craveiro Lopes pela União Nacional; opuseram-se-lhe Arlindo Vicente e Quintão Meireles. Sobre este se escreveu em letras garrafais na alta empena do último prédio construído na João XXI qualquer coisa como ´Não queremos um almirante que navega em águas turvas’. Vivendo desde muito cedo o desejo de se juntar à Briosa, sentiu como ofensa pessoal o contundente escrito e passou a alimentar a esperança de que o almirante ganhasse. Esperança vã. 

os novos colegas

Seis ou sete rapazes, quase todos externos, freqüentavam o 5º ano. 



Seiça Neves, Fontan, Couto Rodrigues, Salvador e Palma Vaz, eram cinco deles. Fotografou-os várias vezes, tal como a muitos outros, ora em posições ora com expressões mais ou menos caricatas, como era de esperar nas idades que tinham. Até de cenas teatrais simuladas sobre o palco do ginásio do colégio colheu imagens, cada um dando largas à imaginação sob a batuta do Palma Vaz, mais dado a pisar as tábuas. 

  






Na festa do fim do ano lectivo, saíu daquele quinteto o elenco de ‘Todo o Mundo e Ninguém’ que colheu rüidosos aplausos de amigos e familiares na assistência. Parte integrante dos festejos foi também um sarau de ginástica aplicada, disciplina muito dinamizada pelo professor, um homem seguramente perto dos setenta anos, coxo e de bengala que conseguia atraír ao ginásio a rapaziada mais dotada. Não era o seu caso, em que o entusiasmo se ficava por admirar quem se aventurava nas traves ou sobre os plintos.

Com a família já regressada de Angola, teve no decurso da festa a visita inesperada do pai que o surpreendeu com bilhetes para o espectáculo de patinagem artística sobre gêlo em que se exibiam nessa noite os ‘Holiday on Ice’. Tal como os colegas entusiasmado com o desenrolar da festa insistiu em ver-lhe o fim. Ignorava a beleza de noite que o pai lhe propunha. A pachôrra que este teve em aceitar-lhe a teimosia só pode dever-se ao seu próprio desconhecimento do que iriam ver. Chegaram tarde e terão assistido apenas ao terço final da exibição. Que deslumbre de luz e côr! Que elegância e destreza! Que arrependimento! 

Não tardou muito voltou a faltar-lhe, em relação ao mesmo palco, o sentido de oportunidade que julgava ter. De novo com o pai – mãe e irmã ainda estavam em Faro – passeava pela Avenida da Rèpública junto ao Campo Pequeno que regurgitava de gente, quando este lhe propôs uma ida aos touros. Não quis. Que raio de melhor alternativa terão escolhido? Mistério! Não era e continua a não ser um aficionado da festa brava, que não hostiliza. Ao tempo, tudo que tinha visto de touros resumia-se a uma lide a cavalo em arena improvisada junto à piscina da Senhora do Monte, no Lubango. A lide fazia parte das comemorações do Tricentenário da Restauração de Angola tal como a inauguração da própria piscina, normalizadas e muradas  que tinham sido as margens do charco original. O cavaleiro era o Senhor Bretes, seu conhecido da Alfândega de Moçâmedes. A oportunidade perdida anos depois no Campo Pequeno, bem, essa foi não ter visto Manuel dos Santos executar por uma tarde o proibidíssimo final de dar morte ao touro na arena. Repêso de novo! E sem remédio.

acalmia breve

Estariam quase a terminar as aulas quando se pôs a questão de escolher casa em Lisboa. Por um par de dias teve pais e irmã vivendo numa pensão na baixa. Avaliadas muitas hipóteses de aluguer, soube que uma boa casa na Morais Soares fôra reprovada por ter o Alto de S. João próximo demais. Sendo que a vida não tem dimensão métrica, qual será a distância ideal do porto de abrigo temporário de uma morada ao definitivo cemitério? Também colaborou na busca e lembra-se de em domingo de muito sol ter calcorreado uma Avenida de Roma em construção, prédios ainda no tijolo, montes de andares de cinco assoalhadas disponíveis a oitocentos escudos, todos chumbados pela mãe porque… ficava muito longe! Foi eleito um primeiro andar na Conde de Monsaraz por novecentos mil réis, muito perto da casa na Penha de França, que habitara por pouco tempo, quando em 1940, com tosse convulsa, o levaram a mudar de ares e a fazer longos passeios pela mata do Alfeite a respirar o imenso pinhal. Guarda vagas lembranças desse tempo, em que decorria a Exposição do Mundo Português.

Tal como nas vésperas da partida para Angola visitaram o Jardim Zoológico,


aquando da volta este continuava a ser, sob pretexto de dá-lo a conhecer às crianças, um destino interessante e muito procurado pelos mais crescidos. Feliz por ter sido o elo de ligação da amizade surgida entre os pais e os Eugénio, exultou com o passeio das duas famílias ao… Jardim Zoológico.



Em pouco tempo se visitavam e faziam serões. O relacionamento das famílias evoluiu de tal modo que os casais vieram a tornar-se compadres quando os pais apadrinharam em S. Vicente de Fora8169 o matrimónio da Fernanda, anos depois ela própria e o marido padrinhos de casamento do menino feito adulto.




a justeza das coisas

E chegaram os exames que nem sequer se deu ao trabalho de temer. Ciente do pouco esforço investido no estudo das matérias ao longo do já de si minguado tempo de que dispusera, passou vagamente os olhos por um ou outro livro menos massudo e dispôs-se a esperar o milagre. Se algumas disciplinas havia que por apetência inata, em termos chãos, estariam no papo, havia as que não poderiam ser ultrapassadas sem trabalho; e este falecera-lhe. Tão bem que sabia arvorar-se em homenzinho para acamaradar, rir e folgar e que puto irresponsável era afinal quando a vida lhe pedia que crescesse.

Mal percebidos, quiçá mal ministrados, os ensinamentos catequéticos absorvidos, primeiro em Faro, na Capela de Santo António do Alto e depois em Moçâmedes num convento de freiras, aliados à sedução dos rituais, tornaram-no um pretenso católico, mal resolvido. Feita a comunhão solene a que de imediato se seguiu a confirmação do baptismo, quedou-se por aí a sua formação religiosa, a que só bastante mais tarde deu seqüência, então de uma forma independente e apartidária. Não obstante procurar convencer-se da bondade da ligeireza com que nos últimos meses encarara a profissão de estudante, bem lá no íntimo, a consciência acusava-o. Mas não com força bastante para um acesso de vontade e coragem que o fizesse tomar o boi pelos cornos e olhar os livros. Veio então ao de cima a confusão entre o poder do Além e as fraquezas terrenas: aplicou-se em interesseiras rezas, como se foram a sua parte de uma conta-corrente, em que, pataca a mim, pataca a ti, o estorno seria o milagre. A paga não chegou e zangou-se. Teve o desplante de ficar zangado.

Na manhã do primeiro dia de exames, a mãe, para além do cuidado no atavio do filho, esmerou-se no mata-bicho que incluiu a novidade de uma infusão de tília ‘p’ra que não estejas nervoso’. Quando saiu de casa não sabia ainda onde era o Liceu Camões. Foi a pé, quase pelo cheiro, em busca da Praça José Fontana. Sendo que a distância era maior que a da informação colhida e com o tempo a esgotar-se na procura, sobreveio-lhe uma intranqüilidade a que não era atreito e que atribüi ainda hoje à bem intencionada tília. Vá lá, sobre a hora, mas chegou.

Tudo correu como era justo que corresse. Chegou às orais, mas até mesmo a letras, que ultrapassou, não foi difícil a Sérvulo Correia, o reitor, identificar que a sua leitura de Matoso pouco fôra além da Antigüidade Clássica.       

Mezena
FZ, 07JUL2013